"Faltam castigos exemplares que desincentivem a corrupção"
Por Nuno Pacheco, Raquel Abecassis (RR) e Shamila Mussá (fotos)
O General Garcia dos Santos aponta o poder político como parte do problema da corrupção e acusa os presidentes de nada fazerem.
Foi uma entrevista sua em Outubro de 1998, ao semanário Expresso, denunciando casos de corrupção na JAE (Junta Autónoma das Estradas, hoje Estradas de Portugal), que levou à criação de uma comissão parlamentar para investigar casos de corrupção. Passados mais de dez anos a corrupção volta à ribalta e o general Garcia dos Santos, 74 anos, engenheiro civil, ex-chefe do Estado-Maior do Exército (1983/2) e ex-presidente da JAE (1997-98), retoma, em entrevista ao programa Diga Lá Excelência, algumas das suas críticas mais veementes.
Passaram-se mais de dez anos sobre o caso JAE. O que acha que impediu que esse caso fosse cabalmente esclarecido e que houvesse resultados práticos da sua denúncia?
Houve algumas punições, como resultado da sindicância então feita, mas houve um amortecimento sobre a situação propriamente dita da corrupção. Denunciei isso junto da comissão parlamentar de inquérito...
Mas foi-lhe pedido que desse nomes e recusou-se a fazê-lo.Exactamente. Houve empreiteiros que me disseram que davam dinheiro para isto e para aquilo ao senhor tal e ao partido tal, mas quando eu lhes perguntei se eventualmente quereriam denunciar isso junto da comissão parlamentar de inquérito, recusaram todos lá ir. E como não me autorizaram a dar os nomes deles eu recusei-me a identificá-los na comissão, isso constituiu desobediência qualificada e, como tal, fui julgado. E acabei por ser o único condenado, com uma multa de 150 ou 160 contos.
Mas foi também à Procuradoria-Geral da República.
Na altura o procurador era o dr. Cunha Rodrigues. Quando lhe apresentei o caso, perguntou-me: "Tem provas?" "Não, o senhor é que tem obrigação de as procurar", disse-lhe eu. "Então se não tem provas é escusado continuarmos a conversa."
Como vê o regresso da corrupção à ribalta e os pacotes legislativos que têm vindo a ser discutidos no Parlamento?
O problema da corrupção não tem solução em termos de acabar definitivamente. Porque a burocracia facilita-a e vice-versa. Mas o facto de a justiça não punir exemplarmente umas quantas pessoas e demorar imenso tempo na recolha das culpabilidades acaba por ser um incentivo ao aumento da corrupção. Se um corrupto fosse punido exemplarmente, isso serviria de exemplo.
Mas há uma dificuldade: a produção de prova. Há alguma maneira de ultrapassar isso?
A corrupção não é fácil de provar porque não há recibos, não há cheques nem facturas nem nada. O dinheiro é entregue em notas. Só se os intervenientes denunciarem. E mesmo assim é difícil porque os outros podem dizer: "Prove!" E não há provas. Mas tem que haver uma solução, porque isto não pode continuar assim.
Mas acha que é sobretudo com leis que se resolve isso?
Portugal é um país onde prolifera a legislação. E julgo, embora não seja especialista, que haverá leis suficientes para aplicar a situações deste tipo. O que falta são castigos exemplares que desincentivem a corrupção. Esse é o problema principal.
O sistema político e partidário que temos está interessado em travar a corrupção? Ou é parte do problema?É uma das partes do problema, claramente. Porque essas vias são uma possibilidade de financiamento dos partidos políticos.
Mas a lei de financiamento dos partidos mudou. Isso não atenua tais práticas?
Penso que terá atenuado. Mas, como sempre, à boa maneira portuguesa, somos especialistas em fugir à lei. Por isso não há uma diminuição clara da corrupção.
O presidente do Tribunal de Contas sugere uma forma diferente de proceder a concursos públicos, atribuir empreitadas, etc. Acha que pode ser uma solução?
Pode ser uma solução importante. Mas a legislação é muito complicada e por vezes a dificuldade que existe na atribuição, na abertura de concursos públicos e na adjudicação leva a que se procure facilitar e apressar, fugindo a processos que seriam controláveis.
Acha que há em Portugal uma cultura que beneficia este tipo de comportamentos? Nas eleições, por exemplo, vimos serem eleitos autarcas condenados por corrupção...
Penso que sim. O português, com o seu desenrascanço tradicional, procura sempre caminhos que possam acelerar as coisas ou obter meios, sobretudo financeiros, por portas travessas. Isto não é extensivo a todos os portugueses, pelo contrário. Porque não é a sociedade, são os processos que a sociedade utiliza. E aí a justiça tem uma forte palavra a dizer. Era preciso que a justiça fosse mais rápida e que pessoas com determinados perfis, corruptas, fossem punidas exemplarmente.
O que acha que tem impedido essa justiça exemplar?
Talvez um certo facilitismo. É preciso responsabilizar. Se num determinado organismo existe corrupção, nem era preciso ir a tribunal, os responsáveis tinham obrigação de punir os corruptos. E muitas vezes isso não se faz.
Falou, há pouco, em entraves. Acha que um deles é o próprio poder político?
Acho que sim. O poder político tem muitas culpas nesta situação. E eu penso que o primeiro responsável por isso é o Presidente da República. Porque tem obrigação de chamar a atenção para estas situações e impor ao governo a resolução dos problemas.
O presidente Jorge Sampaio por diversas vezes se referiu a esse fenómeno...
O dr. Jorge Sampaio, quando foi Presidente da República, não fez absolutamente nada. Eu tive ocasião de lhe escrever uma carta fazendo-lhe algumas sugestões. Nem me respondeu. E agora aparece com linhas de estratégia para o país. Dá vontade de rir!
Acha que o actual Presidente, Cavaco Silva, tem mais em linha de conta essa preocupação?
Não, não tem nenhuma. Está calado, não faz rigorosamente nada nesta área e tinha a obrigação de fazer.
Se lhe dessem a si, agora, oportunidade de tomar três grandes medidas de combate à corrupção, o que faria?
A medida número um era responsabilizar as pessoas que estão à frente de determinados organismos. Se houvesse denúncias ou conhecimento de corrupção, tinham que agir e punir os infractores. Se não punissem, eram eles próprios afastados e punidos, porque não tinham actuado. Enquanto isto não se fizer, não há responsabilidade nenhuma. A segunda medida era arranjar forma de detectar os processos de corrupção. E a justiça devia ser mais célere. Se não tem meios, pugne para os ter. Está a dormir!
" Os homens com mau feitio são afastados"
O Presidente da República diz que este clima afasta as pessoas da política. Concorda?
"Eu não sei se são as pessoas que se afastam, ou se é o poder que as afasta porque são incómodas. Eu já fui qualificado com um homem com mau feitio, por escrito, pelo ministro Veiga Simão, então ministro da Indústria. Escreveu-me a dizer que já tinha dito aos homens dele que eu era um homem com mau feitio. E os homens com mau feito que querem que as coisas sejam transparentes são naturalmente afastados. Eu saí de chefe de Estado-Maior do Exército em 1983 e só em 1997 é que me chamaram para fazer qualquer coisa. Portanto estive 14 anos sem fazer rigorosamente nada. E eu tinha 40 anos na altura, acho que ainda era um homem válido. É claro que não estive sem fazer nada. Sou engenheiro civil e trabalhei. Agora como eu terá havido muitas pessoas, que não são aproveitadas porque são homens com mau feitio, que incomodam."
Falta à sociedade civil a disciplina dos militares
Na noite de 24 para 25 de Abril de 1974, Garcia dos Santos foi um dos militares que esteve no quartel da Pontinha (onde também esteve Otelo), envolvido no golpe militar que derrubou a ditadura.
Já se interrogou alguma vez, ao longo destes 35 anos, se foi para isto que fez o 25 de Abril?
Já, com toda a sinceridade. O Movimento das Forças Armadas disse que, uma vez feita a revolução, entregava o poder à sociedade civil. Eu interrogo-me se isso teria sido uma boa solução. Não sei se os militares teriam sido capazes de resolver o problema, mas a dúvida fica. Talvez as coisas tivessem sido orientadas de outra forma. Porque nós temos, apesar de tudo, uma formação e uma disciplina...
Acha que falta à sociedade civil a disciplina dos militares?
Acho que sim. Com toda a clareza. Mas também teríamos corrido riscos, se isso tivesse acontecido. Podíamos eventualmente cair numa ditadura militar.
Mas que balanço é que faz destes anos de democracia?
Dos três D, a democratização existe; a descolonização foi feita; sobre o desenvolvimento é que tenho grandes dúvidas. O país está sem rumo, sem objectivos. E não é possível desenvolver-se um país sem definir metas, caminhos, por forma a que se atinja um estado que todos desejamos.
A república está prestes a fazer 100 anos e há muita gente que compara a situação que vivemos com aquela que se viveu nos últimos dias da monarquia ou da república. Concorda com isso?
Sou capaz de concordar nalgumas coisas. Nessa altura também não se definiam rumos. Aliás, a nossa história de 900 anos é sistemática em situações deste tipo.
É uma gente ingovernável, como diziam certos autores?
Não se governa nem se deixa governar, isso já é do tempo do Viriato.
Acha que este mal-estar pode vir a gerar algum tipo de revolta?
Pode. E tenho medo que isso possa acontecer. Já há na nossa sociedade pessoas que, primeiro, dizem que a culpa de tudo foi do 25 de Abril; segundo, que é preciso outro 25 de Abril doutra maneira que ponha isto nos carris. O que pode acontecer? Não faço ideia. Mas pode dar azo a coisas que o país não merece.
Acha plausível uma revolta a partir das Forças Armadas?
Acho que não. Confio nas chefias militares, porque estão conscientes de que a democracia existe e que o poder político deve ser exercido pelos civis.